O momento é adequado para a mudança do artigo 9º da Lindb (Lei de Introdução ao Direito brasileiro). É imperioso que a lei preveja, de forma expressa, a possibilidade de as partes escolherem a lei aplicável aos contratos internacionais. Trata-se de uma inclusão relevante e necessária ao ordenamento jurídico brasileiro, há muito aguardada pela comunidade jurídica nacional. Afinal, é preciso que seja afastada, de maneira definitiva, qualquer dúvida porventura remanescente quanto à omissão do artigo 9º quanto à autonomia da vontade para escolha da lei, que foi alvo, no passado, de críticas doutrinárias, inclusive de minha parte.
A aplicação da lei estrangeira em situações multiconectadas decorre, no Brasil, da qualificação da situação jurídica e da posterior aplicação neutra do elemento de conexão pertinente à matéria, o qual indica a lei aplicável sem consideração prévia quanto ao seu conteúdo. Esse método está previsto nos artigos 7º a 17 da Lindb. Assim, diante de uma controvérsia conectada a mais de um ordenamento jurídico, cabe ao juiz, de ofício, determinar a lei aplicável com base na regra de conexão correspondente.
Como salvaguarda, impede-se a aplicação da lei estrangeira quando esta contrariar os princípios fundamentais que informam o sistema jurídico brasileiro, o que se denomina ordem pública internacional brasileira. A aplicação da lei estrangeira pelo Judiciário nacional é prática consolidada e recorrente, tanto na via direta, como na indireta, notadamente no âmbito nas ações de homologação de decisões estrangeiras.
Sob a perspectiva do direito comparado, nota-se que o princípio da autonomia da vontade encontra respaldo expresso em diversos ordenamentos jurídicos da América Latina, especialmente nos países do Mercosul. Argentina, Uruguai e Paraguai preveem expressamente a possibilidade de escolha da lei aplicável em contratos internacionais. Este último, inclusive, incorporou integralmente os dispositivos dos Princípios Relativos à Escolha da Lei Aplicável aos Contratos Internacionais, elaborados pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH) [1].
Em outras regiões, a regra é semelhante: países como Austrália, Canadá, Estados Unidos e Reino Unido também reconhecem a autonomia das partes para eleger a lei aplicável. No contexto europeu, o Regulamento (CE) nº 593/2008 (Roma I) consagrou esse princípio como norma uniforme aplicável a todos os Estados-membros da União Europeia.
No âmbito da soft law, a possibilidade de escolha da lei é prevista nos Princípios Relativos à Escolha da Lei Aplicável aos Contratos Internacionais, elaborados pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH) [2], bem como nos Princípios do Unidroit relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado [3]. Embora não vinculantes, tais instrumentos refletem a prática internacional, oferecem orientações interpretativas consistentes e influenciam a produção normativa a respeito em diversos países.
Por isso, é preciso modificar a legislação vigente para que seja incluído, de forma inequívoca, o reconhecimento da autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável aos contratos internacionais. Essa modificação sedimentaria em definitivo qualquer incerteza interpretativa em torno da redação do artigo 9º da Lindb, ao incorporar expressamente uma regra que já vem sendo consagrada pela jurisprudência nacional e que já se encontra prevista em outras áreas do ordenamento jurídico brasileiro.
Destaca-se, nesse sentido, o artigo 2º, §1º, da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), segundo o qual: “Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.” Ao longo de quase três décadas de vigência, esse dispositivo jamais suscitou controvérsias relevantes e vem sendo aplicado rotineiramente por tribunais arbitrais com plena aceitação.
Nos últimos anos, o STJ consolidou jurisprudência no sentido de reconhecer a autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável aos contratos internacionais, independentemente da via de resolução de controvérsias neles prevista (se arbitral ou judicial) [4] Diversos julgados confirmam essa orientação, como o REsp 1.280.218 [5], em que se afirmou: “em contratos internacionais, é admitida a eleição de legislação aplicável”. Com base nessa posição, os tribunais estaduais também vêm adotando decisões alinhadas, confirmando a autonomia da vontade na escolha da lei.
Para reiterar o que se afirmou acima, vale referenciar o Agravo Interno no REsp 1.343.290 [6], de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, com explicação cristalina no item 4 da ementa sobre o porquê da permissão às partes para escolherem a lei aplicável a um contrato internacional: “4. A autonomia da vontade possui especial proteção nas relações contratuais internacionais de natureza patrimonial, ressalvada afronta à soberania nacional, ordem pública e bons costumes.”
Assinala-se que a adoção do princípio da autonomia da vontade não é desprovida de limites ou de restrições à sua aplicação. Sua incidência limita-se aos contratos internacionais firmados entre empresas (business to business — B2B), estando excluídas as hipóteses envolvendo consumidores e relações de trabalho. Desse modo, assegura-se políticas legislativas nacionais de proteção em contextos de desequilíbrio entre as partes. Ademais, normas imperativas associadas à defesa de interesses públicos, em razão de sua natureza inderrogável, permanecem aplicáveis de forma obrigatória pela autoridade judiciária brasileira, independentemente da escolha da lei estrangeira pelas partes contratantes.
Escolha
É importante enfatizar que a autorização para a escolha da lei aplicável, que ora se defende, não interfere no exercício de jurisdição pelos tribunais brasileiros. Trata-se, infelizmente, de uma confusão ainda recorrente entre operadores jurídicos. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já enfrentou expressamente essa questão, como se observa no acórdão de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, anteriormente citado [7]. No item 6 da ementa, consta: “O exercício da jurisdição nacional não afasta, por si só, a aplicação da lei material estrangeira, por se tratarem de esferas jurídicas diferentes, com aplicabilidade híbrida no território nacional.”
É fundamental compreender que a escolha da lei estrangeira aplicável a um contrato internacional não implica, por si só, que a jurisdição competente para dirimir eventual controvérsia seja estrangeira. A aplicação da lei indicada pelas partes pode perfeitamente ser realizada por juiz nacional, sendo independentes as esferas da jurisdição e do direito material aplicável. Salvo nas hipóteses em que o Brasil detém jurisdição exclusiva, nos termos do artigo 23 do Código de Processo Civil prevalece, nas relações jurídicas internacionais, a regra da jurisdição concorrente. Nesse sentido, o STJ já reconheceu e homologou cerca de 28 mil decisões estrangeiras em matérias que poderiam, em tese, ter sido submetidas à jurisdição brasileira, tanto no campo dos negócios quanto no direito de família.
Salienta-se que o STJ já teve oportunidade de analisar especificamente se a escolha da lei pelas partes poderia constituir impedimento a que uma sentença estrangeira fosse reconhecida no território nacional, por ofensa à ordem pública. Na sentença estrangeira nº 3.932 [8], caso Braspetro x Petromec, a requerida se opôs à homologação sob o fundamento de que a aplicação do direito material inglês, escolhido pelas partes e cujo comando era diverso da lei brasileira, violava a ordem pública internacional brasileira e, consequentemente, deveria ser causa de indeferimento do pedido de homologação.
A Corte Especial do STJ deferiu a homologação, entendendo que a aplicação da lei estrangeira não violava a ordem pública internacional brasileira. A transcrição de parcela da ementa sobre esse tema elucida qualquer dúvida a respeito da questão:
“(…) II – ‘O Art. 88 do CPC, mitigando o princípio da aderência, cuida das hipóteses de jurisdição concorrente (cumulativa), sendo que a jurisdição do Poder Judiciário Brasileiro não exclui a de outro Estado’(REsp 1.168.547/RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 7/2/2011). III – In casu, as partes optaram livremente em propor as demandas perante a Justiça Britânica, diante da eleição do foro inglês nos contratos firmados. (…) V – Ausência de ofensa à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes, uma vez que o princípio solve et repete – assim como a regra da exceção do contrato não cumprido – não possui natureza de ordem pública, razão pela qual foge à apreciação por esta via.”
Reconhecimento
Conclui-se que a inclusão de disposição legal reconhecendo a autonomia da vontade das partes para escolher a lei aplicável aos contratos internacionais, com a devida delimitação de seus contornos, formalizará entendimento já pacificado na jurisprudência pátria e refletirá o alinhamento do Brasil aos sistemas jurídicos dos países com os quais mantém estreita cooperação econômica e comercial.
A medida harmonizará a legislação vigente com os parâmetros do direito internacional contemporâneo e reforçará a previsibilidade jurídica nas relações transnacionais, criando ambiente mais favorável ao incremento das parcerias comerciais e à atração de investimentos estrangeiros.
[2] Disponível aqui
[3] Disponível aqui
[4] REsp 1.280.218, de 2016; REsp 1.343.290, de 2019; REsp 1.850.781, de 2021 e REsp 1.867.928, de 2022.
[5] Recurso Especial nº 1.280.218, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 21.06.2016
[6] Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.343.290, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.08.2019.
[7] Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.343.290, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.08.2019.
[8] SEC 3932, Corte Especial, Relator Min. Felix Fischer, j. 06.04.2011.
Por Nadia de Araujo, sócia do escritório Nadia de Araujo Advogados, professora de Direito Internacional Privado na PUC-Rio, doutora em Direito Internacional pela USP e mestre em Direito Comparado pela George Washington University.
Fonte: Conjur, 20 de junho de 2025, 6h09
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