Comitê de resolução de disputas na nova Lei de Licitações e Contratos

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Sobretudo no campo dos contratos administrativos, é comum que surjam questões muito específicas e cuja solução dependa de conhecimentos técnicos extrajurídicos. Contratos públicos para edificação de obras, realização de serviços de engenharia ou desenvolvimento de projetos complexos, por exemplo, suscitam debates pormenorizados sobre tamanho de tubulações e fios, qualidade de materiais, técnicas de impermeabilização e pintura, qualidade do solo e estrutura geológica, entre outros temas distantes e estranhos ao direito.
Por isso, submeter a juristas conflitos sobre assuntos dessa natureza geraria nenhuma ou reduzidíssima utilidade. Para resolver essa questões, é indubitavelmente mais útil ouvir um ou um conjunto de especialistas com formação pertinente e capazes de oferecer respostas mais adequadas e aprofundadas.
É sob essas circunstâncias que entra em jogo o comitê de resolução de disputas (CRD). Esse instrumento de solução de conflitos técnicos foi trazido do direito norte-americano, em que aparece como “dispute resolution board” (DRB) ou “dispute adjudication board” (DAB).
Inicialmente, a menção ao instituto no direito nacional despontou em atos normativos locais. Exemplo disso é a Lei Paulistana nº 16.873/2018, de iniciativa do vereador Caio Miranda, e posteriormente regulamentada na gestão do prefeito Bruno Covas no Decreto nº 60.067/2021. Esses diplomas locais introduziram os “Comitês de Prevenção e Solução de Disputas em contratos de obras públicas e de execução continuada”.
Seguindo esse movimento, a nova Lei de Licitações (NLLC) consagrou de maneira expressa o comitê de resolução de disputas (artigo 151) e o submeteu a algumas regras gerais, igualmente aplicáveis à arbitragem. No tratamento extremamente sucinto do tema conferido pela NLLC, esses comitês estão limitados a resolver questões sobre direitos patrimoniais disponíveis, como as que tenham impacto sobre a equação de equilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos, inadimplemento de obrigações contratuais e cálculo de indenizações (artigo 151, parágrafo único). Para além dessas poucas regras gerais, a lei exige que se estipulem critérios isonômicos, técnicos e transparentes para a escolha dos membros dos comitês (artigo 154).
Afora esses parâmetros básicos, a NLLC nada mais indica, tornando essencial que se teçam algumas considerações sobre as várias possibilidades de organização desses comitês.
Em relação à composição, os CRD geralmente são formados por um grupo de especialistas em número ímpar com o objetivo de evitar empates decisórios. Esse grupo geralmente abrange três membros, mas pode envolver mais que isso. O importante é que a quantidade de membros não se eleve indevidamente a ponto de comprometer a decidibilidade, ou seja, a capacidade de decidir de maneira rápida e eficiente.
Em relação aos membros, é fundamental que se garanta a participação de profissionais com conhecimentos técnicos aprofundados sobre aspectos do objeto contratado, além de autonomia e isenção em relação às partes contratantes. Como os CRD são comuns para contratos de obras e projetos complexos, é frequente sua composição por engenheiros ou profissionais congêneres. Isso não obsta, porém, que juristas formem o comitê. Entendo que a participação de, ao menos, um profissional do direito é sempre recomendável, sobretudo porque contratos públicos são guiados pela legalidade e a autonomia das partes é fortemente limitada pelo legislador. Para além da adequação da formação profissional, a autonomia e isenção do CRD recomendam que cada membro seja indicado por uma das partes contratantes e os dois membros então apontam o terceiro, que atuará como presidente.
Em relação ao funcionamento, é possível diferenciar os comitês permanentes e os comitês pontuais, transitórios ou “ad hoc”. Os permanentes acompanham o contrato desde o seu início. Isso torna os membros mais familiares com a realidade das partes e as dificuldades da execução, de modo a permitir que tomem decisões aderentes, rápidas e coerentes umas com as outras. Porém, ao mesmo tempo, a atuação constante tende a elevar os custos, onerando as partes. Já os comitês pontuais são formados para lidar com problemas específicos ao longo da execução, razão pela qual se exaurem com o proferimento da decisão ou recomendação. Por isso, os custos que geram às partes tendem a ser menores.
Em relação à decisão, os CRD são dotados ora com mero poder recomendação, assemelhando-se à conciliação, ora com poder de expedir decisões vinculantes às partes, aproximando-se da arbitragem. Como dito, a NLLC não trata desses detalhes, nem consagra essa classificação, que, em verdade, provém do direito estrangeiro.
Em qualquer caso, a expedição de decisões ou recomendações somente ocorrerá após uma das partes submeter questões ao comitê, que as examinará, coletará provas e proferirá sua manifestação técnica. Dada a presença de controvérsia, apesar do silêncio da NLLC, entendo fundamental que esses comitês respeitem a ampla defesa e o contraditório ao atuarem sobre conflitos envolvendo a administração pública e particulares, sem prejuízo da flexibilidade das partes para estipular os procedimentos e os prazos dentro dos parâmetros definidos pela legislação. A inafastabilidade da ampla defesa e do contraditório é resultado expresso de norma constitucional, aplicável sempre que a administração utilizar qualquer procedimento para tratar de situação adversarial (artigo 5º, LV).
Em síntese, a grande vantagem dos comitês de resolução de disputas, consagrados na NLLC de 2021, é oferecer resolução rápida e eficiente de conflitos extremamente técnicos e extrajurídicos, frequentes em obras e projetos complexos. Ao agir com apoio de especialistas e solucionar questões especializadas, os comitês contribuem para a continuidade das atividades contratadas, para a boa relação entre as partes, assim como para evitar processos judiciais ou arbitrais, com as delongas e desgastes típicos desses meios de solução de controvérsias mais complexos.
Por Thiago Marrara, professor de Direito Administrativo da USP (FDRP), consultor, parecerista, árbitro e autor de manual de Direito Administrativo e coautor do manual de licitações e contratos.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 23 de julho de 2023, 7h09
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